Um estudo das marcas do Regionalismo num fragmento de Vidas secas, de Graciliano Ramos
Um estudo das marcas do Regionalismo num fragmento de Vidas secas, de Graciliano Ramos[1]
Um texto narrativo se constrói num diálogo permanente com o todo que é apresentado ao leitor, registrando não apenas a fala do criador da obra de arte, mas as muitas vozes que se somam no universo social e histórico que ele se propõe retratar [2]. Registrar os fatos não se faz apenas com uma sequência de acontecimentos, com destaque para esta ou aquela personagem, este ou aquele aspecto da ambiência. A escolha da palavra exata, do termo específico, da expressão que pode salientar ou diluir uma sensação, uma percepção é o que dá colorido e verossimilhança à trama. A forma reveste o fundo, faz com que o leitor seja envolvido pelas palavras e pelos fatos apontados.
O trecho abaixo é parte do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos[3]:
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira, os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que não viam sombra.
Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.[4]
O enfoque principal do texto é a seca. Nos parágrafos aqui apresentados, mais especificamente, destacam-se as agruras e esperanças da jornada de Fabiano e sua família de retirantes.
Vamos, agora, caminhar pelas relações textuais estabelecidas em seu processo de organização. Podemos, assim, não apenas compreender seu sentido, mas mergulhar, por meio de nossa leitura, num espaço de descobertas.
Como o autor garante a coesão do texto?
Observemos inicialmente os nexos (elementos que aproximam as várias partes do texto) de que se vale Graciliano Ramos na construção da narrativa.
Elisa Guimarães lembra que a rede de relações entre os vários elementos constitutivos de um texto forma um movimento de vaivém que permite captar o sentido do texto e determinar as unidades que o estruturam. [5]
Fácil é constatar-se a forma escolhida por Graciliano para marcar, no segmento destacado, a progressão textual, apoiada na sucessão cronológica dos fatos apresentados, forma essa que, aliás, acentua a progressão da própria narrativa, tecida com o aproveitamento da progressão temporal. As ações ali são listadas de forma sequencial, sem rodeios ou interrupções, marcando o ritmo da busca.
No desenvolvimento do texto, percebem-se segmentos, diferenças de enfoque que se sucedem e se completam. Podemos, para melhor observá-las, assim distribuí-las:
segmento a) – de As manchas dos juazeiros até … para não estragar força;
segmento b) – de Deixaram a margem do rio até … Baleia foi enroscar-se junto dele;
segmento c) – de Estavam até … tinham fugido.
O segmento a (As manchas dos juazeiros até … para não estragar força) desperta no leitor a cumplicidade com o sofrimento de Fabiano.
O primeiro período do parágrafo, iniciado com o sujeito, apresenta-se em ordem direta, o que vem a dar destaque para a presença dos juazeiros como sinal de esperança. Embora a palavra esperança apareça apenas no parágrafo seguinte, a ideia se transmite já a partir do sentido semântico dos verbos aligeirou (o passo) e esqueceu (a fome). O emprego de vírgula, e não ponto, separando/unindo a informação inicial (surgimento dos juazeiros) e a reação de Fabiano reforça a relação entre os fatos.
A esperança se manifesta nas informações do parágrafo seguinte ao que acima se comentou. Neste, a coesão gramatical se faz pela sequência de verbos em terceira pessoa do singular que remetem à personagem Fabiano, sem mencioná-lo diretamente. A predominância de orações coordenadas, no mais das vezes assindéticas (sem elementos de ligação), acentua as emoções primárias e a falta de complexidade de Fabiano. Fabiano aparece, aliás, de forma recorrente em vários nexos: “As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos (os dedos dele) rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares (os aqui significando seus/dele), duros como cascos, gretavam-se e sangravam”.
O segmento b (Deixaram a margem do rio até … Baleia foi enroscar-se junto dele.) expõe as ações desencadeadas pela vista dos juazeiros. O parágrafo se inicia com um verbo empregado na terceira pessoa do plural, remetendo o leitor ao conhecimento anterior de que Fabiano era acompanhado por sua família. A relação é contextual, mas não imediata. Uma sucessão de verbos também na terceira pessoa do plural leva o leitor a abranger todas as personagens nos movimentos que a esperança desencadeia.
O parágrafo seguinte vai listando as ações das demais personagens, agora incluídas e mencionadas.
Chama a atenção, nos segmentos analisados, a utilização de poucos adjetivos. Seu emprego é preciso e complementa as demais informações presentes nas orações. O mesmo não acontece no trecho que analisaremos a seguir. A organização que o autor escolhe para o parágrafo seguinte fará contrastar o novo momento da narrativa com o movimento de esperança que se construíra até aqui.
O segmento c (Estavam no pátio de uma fazenda sem vida…tinham fugido) desenvolve a ideia de abandono. Acompanhemos os recursos criados pelo autor, para alcançar seu objetivo:
Estavam, forma verbal que localiza (determina o lugar em que se encontra) o sujeito da oração (Fabiano e a família, intencionalmente omitido, para dar mais ênfase ao verbo, mas que o emprego da terceira pessoa do plural evidencia). O significado do verbo estar, entretanto, não indica ação, não revela movimento. Na escolha desse verbo, revela-se uma interrupção da ação.
… no pátio de uma fazenda sem vida. Verifica-se o contraste que surge da aproximação das palavras fazenda e sem vida: fazenda desperta a imagem de movimento e de agitação, de lugar em que se reúnem muitas formas de vida. Tal conotação é destruída, de forma brusca, pelo emprego da expressão sem vida.
O curral deserto… Observa-se aqui o mesmo recurso já empregado: o substantivo curral, com um sentido pragmático (significado + associação de ideias despertadas pela vivência, pelo uso, pela situação) de movimento, vida, quantidade de animais se entrechocando, é desmentido pelo adjetivo deserto.
O contraste é novamente utilizado em chiqueiro das cabras arruinado e também deserto. No adjetivo arruinado se esconde uma dupla impressão de abandono: dos animais que ali haviam habitado (reforçado pela expressão também deserto) e da mão humana que deixara de promover a recuperação do chiqueiro (e cuja ausência o deixara estar arruinado).
A mesma estratégia se repete em a casa do vaqueiro fechada: casa do vaqueiro carrega um sentido de convivência que é negado pelo adjetivo fechada, reforçando-se no tudo anunciava abandono. O pronome tudo, ao ser empregado para resumir a realidade adversa que cercava as personagens, adquire especial intensidade.
A coesão textual é tecida, entre outros recursos, pela reiteração de uma informação por meio do emprego de ideias sinônimas ou aproximadas. O autor o faz reforçando de diferentes maneiras uma mesma informação, a de que aquilo que representava vida fora destruído.
Significado especial adquirem os verbos da oração seguinte: Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido – finar-se é morrer devagarinho, sem condições de luta (condição animal), fugir indica consciência da tragédia (condição humana), única diferença a distinguir homens e animais. [6]
A soma das impressões que a leitura atenta dos três segmentos possibilita permite compor três quadros que, somados, construirão a imagem maior que o fragmento do romance Vidas secas pretende transmitir. Essa imagem, por sua vez, encaixa-se no tema geral do romance que, como sabemos, enfoca a tragédia do homem e da natureza frente à seca do Nordeste (Empregamos o termo tema com o significado de ideia primordial que desencadeia o assunto).
[1] Este estudo é parte de minha dissertação de mestrado, O texto no espaço virtual: a leitura em rede, apresentado aqui revisto e adaptado ao objetivo desta publicação.
[2] BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP/ HUCITEC, 1988.
[3] RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 12 ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965. Obs.: A grafia do texto aqui apresentado foi atualizada, com a eliminação dos acentos atualmente em desuso.
[4] RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 12 ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965, p. 10-11.
[5] GUIMARÃES, Elisa. A articulação do texto. Série Princípios, 8 ed. São Paulo: Ática, 2000, p.22.
[6] A análise que acima apresentamos é baseada no trabalho desenvolvido pelos professores Fernando Lázaro Carreter e Cecília de Lara, no Manual de Explicação de Textos, Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro.