O Conto em Machado de Assis
Publicado originalmente na dissertação de mestrado O texto no espaço virtual: a leitura em rede, de Clarmi Regis
Sônia Brayner nos informa que a produção do contista Machado de Assis se inicia em 1858 (com Três tesouros perdidos) e estende-se aos inícios do século XX, com a produção de quase 300 contos, publicados nos jornais e revistas da época. “O conto tornou-se em suas mãos matéria dúctil, com fisionomia reconhecível, na qual […] exercia a magia encantatória de suas variações sobre o tema predileto: a humanidade com seus vícios intemporais.” [1]
Em Murmúrios no espelho, análise que apresenta os Contos de Machado de Assis, Flávio Aguiar aponta a diferença entre conto e romance: “O romance procura representar o mundo como um todo: persegue a espinha dorsal e o conjunto da sociedade. O conto é a representação de uma pequena parte desse conjunto. Mas não de qualquer parte, e sim daquela especial de que se pode tirar algum sentido […]”[2] E é um profundo sentido da flutuação dos valores éticos, da predominância de valores gastos e hipócritas, da acomodação do homem a interesses falsos, da irredutível passagem do tempo, das perdas morais, da decadência física, da presença da morte, da proximidade da loucura que Machado de Assis revela em seus contos.
Embora o conto literário já viesse se firmando no Brasil a partir de meados do século XIX, com Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, é com Machado de Assis que essa forma ficcional revela todas as suas possibilidades. Reconhecido como o maior prosador da literatura brasileira, a produção de seus romances marcada pela habilidade de construir textos mesclados da ironia nascida da observação da sociedade em que vivia, é principalmente como contista que se revela um narrador capaz de prender e conduzir a atenção de seu leitor.
Nos contos machadianos, revela-se uma sociedade habitada por seres solitários capazes de alcançar tão somente uma felicidade mesquinha. A vida desenrola-se como alguma coisa que escapa ao controle das personagens, alheia a suas vontades. A sociedade de convenções a todos esmaga e a eles impõe vidas inautênticas, vazias.
O contador de casos, que se distancia, numa postura literária de observador, e revela uma visão abrangente da sociedade do Segundo Império e da Primeira República, faz do leitor uma presença constante em suas narrativas. É como se a ironia que destila em seus períodos curtos e marcantes fosse resultante do distanciamento procurado para a observação e devesse ser partilhada com o leitor, com o qual divide observações e do qual cobra o mesmo não envolvimento.
Sobre a ironia, ensina ainda Flávio Aguiar: “na ironia está uma das vigas mestras da arte de escrever contos, ressaltada pela urgência do pouco espaço […]”.[3]
Machado de Assis mostra extrema habilidade na elaboração de seus contos de observação e psicológicos, com foco narrativo autobiográfico, em que o ponto de vista da personagem narradora e suas motivações tornam-se exclusivas. A ironia vai-se expandindo não só na análise dos hábitos socioculturais da sociedade do Rio de Janeiro, mas na observação da própria natureza humana, apresentada em seus vícios e limitações permanentes. A apresentação das personagens atende ao desenvolvimento dessa que foi a sua temática mais constante e se projeta no aspecto psicológico que os revela.
Senso de observação, pessimismo, ironia, sensualidade e um inegável senso de humor com que equilibra o pessimismo são aspectos enfeixados em sua arte combinatória capazes de fazer de seus contos o que Alfredo Bosi chama de “um dos caminhos permanentes da prosa brasileira na direção da profundidade e da universalidade”. [4]
Sobre a realização do conto, tinha Machado de Assis o cuidado de não cansar o leitor. Mais: alertava para o processo de criação: “[…] É gênero difícil, a despeito da aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor”[5].
Quanto à execução formal dos contos de Machado de Assis, apresenta Sônia Brayner as variantes seguintes:
- desenvolvimento de um incidente marcante, com cronologia sequencial linear;
- análise de motivações psicológicas;
- adoção de formas literárias tradicionais, com intenção filosófico-moralizante;
- análise de um caráter.[6]
Raros são os contos anedóticos de Machado de Assis (Pai e mãe, A cartomante). Sua preferência estava em desenhar aspectos do psiquismo humano e revelar os valores desgastados de uma sociedade desencadeadora de comportamentos e situações equívocas.
Sônia Brayner alerta o leitor: “Saborear um texto machadiano não é uma tarefa ‘simples’: a leitura de reconstrução é complexa, pois envolve uma dupla decodificação – o que está sendo afirmado no nível da história e o que está sendo veiculado sobre um texto anterior na inversão quase sistemática proposta pelo autor”[7].
OBS.: Você encontra toda a obra de Machado de Assis no sítio Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/?locale=pt_BR da Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] BRAYNER, Sônia (org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 8.
[2] AGUIAR, Flávio. Murmúrios no espelho. In: ASSIS, Machado. Contos. São Paulo: Ática, 1976, p. 6.
[3] AGUIAR, Flávio. Murmúrios no espelho. In: ASSIS, Machado. Contos. São Paulo: Ática, 1976, p. 6.
[4] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. 10 tir. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 203.
[5] ASSIS, Machado de. Obra completa. 2ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962, v. 3, p. 806, apud BRAYNER, Sônia (org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 8.
[6] BRAYNER, Sônia (org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, 12.
[7] BRAYNER, Sônia (org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p.14.