18. A casa de minha infância

18. A casa de minha infância

Durante horas ando e desando pelas ruas ora vazias ora ocupadas por passantes. Apressadas todas em seu cotidiano, nenhuma das pessoas com quem cruzo sequer desvia o olhar.

Essa aparente indiferença não me surpreende: há muito abandonei a cidade a que agora retorno em breve passagem – coisa de reencontro comigo mesma, com minha infância, com meus afetos.

A cidade ficou em mim, impregnada em minha saudade. Por décadas, com ela sonhei todas as noites. No torpor dos sonhos, andei por suas ruas, vi erguerem-se prédios desconhecidos. Perambulei como sonâmbula por espaços cujas mudanças estranhamente podia acompanhar. Subi escadas e descortinei ambientes novos, alguns ainda em execução. Procurei nas calçadas e nas esquinas um rosto conhecido, uma voz familiar. Mas esse passeio noturno era só meu, eu e a cidade, num abraço silencioso, eu lá estando sem de fato estar.

As paredes de amarelo fosco acentuado pelo luar atraíam meus passos. Tantas vezes subi a escada sorvendo o ar em que reencontrava a vida. Detinha-me em cada lance da escadaria a espalhar ao redor a minha busca. Ali estavam as flores que sempre voltei a procurar em meu imaginário: vadeando a vala que conduzia a água da chuva, a longa fila de copos-de-leite; do outro lado do terreno, acompanhando a cerca, sucessivas toiceiras de margaridas com a luz refletida em suas pétalas brancas; as gérberas, num canto mais protegido, florescendo com força – “Só gosto de gérberas e de margaridas, dona Maria, o resto é perda de tempo.” –; as muitas roseiras sobressaindo a tudo; as begônias balouçando no espaço deixado pela escada que levava à casa; as pequeninas verbenas, tapetes de cores unindo os canteiros e ocupando os espaços vazios – aqui nos detínhamos todas as tardes, após o almoço, a falar de nossos sonhos e preocupações – os dedos ágeis de minha mãe interferindo aqui e ali para salvar alguma de suas flores de ameaças que só ela sabia descobrir – “Vocês não vêm tomar o cafezinho, não? … mania de flores…”

Com cuidado, vencia os degraus e chegava à varanda – abraço carinhoso pensado para receber quem ali chegava. Abrindo a porta para a sala de visitas, sem ruído, em meu devaneio encontrava meu quarto.

Mesmo acordada, nas noites vazias de sono, imaginava-me no portão da varandinha a esgueirar-me até meu quarto – sem que o notassem os eventuais moradores – para ali adormecer. O cheiro das vergamotas no quintal do vizinho e o barulho distante da cidade no outro lado do rio embalavam meu sonho com tal intensidade que cheguei a acreditar que lá estivera muitas vezes.

Intensa, nesses momentos, a presença de minha mãe. Voltava ainda mais no tempo; imaginava as minhas Marias combinando os afazeres do dia – chegava até mim o cheiro intenso do café que impregnava nosso despertar; ouvia a voz de meu pai a acalmar meus receios. A casa de novo se enchia da vida que passou; eu de novo criança, sacudindo minhas tranças, segura, num ambiente só meu.

Caminho lentamente pelas ruas que já não me reconhecem; afago os muros, tateio as paredes, sinto os cheiros.

Tomada pela surpresa, encontro erguidas as construções que acompanhei em sonhos; descubro nas portas abertas as escadas que conduzem aos segundos pisos vislumbrados na luz opaca que me fascinou noites seguidas.

Acompanhando a faixa de terra mergulhada em direção ao encontro dos rios, esbarro nas casas novas, cujas fachadas não me surpreendem: eu as sabia ali, como sabia o lugar do novo Correio, a diferente situação da escola básica, a permanência do mercadinho.

O perfume das laranjeiras floridas margeando a rua que, de minha casa, levava ao colégio das freiras intensifica a saudade.

Ali está ela, a minha casa. Desligada de todo o resto, parada no meio da rua, fico a olhá-la: a mesma cor nas paredes, a mesma escada de acesso, o mesmo portãozinho a dar entrada à varanda. Penso em subir os degraus que tantas vezes desci aos saltos, bater à porta e pedir para vê-la: “Eu cresci aqui … Posso entrar? Queria ver o caramanchão da cozinha, as amoras, as avencas que saltam do muro detrás da casa…”.

Não tenho coragem. Fico ali, simplesmente olhando. Quanto tempo? Não sei… O que marca o tempo?

Antes de me afastar, desvio mais uma vez meu olhar para a janela do quarto de meus pais. Debruçada no parapeito, uma menina de tranças, cúmplice, sorri para mim.

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