21. Arrumando o guarda-roupa

21. Arrumando o guarda-roupa

Tímidas, ousadas, arrogantes, elas, as roupas, foram saindo de seus esconderijos, algumas ali esquecidas há muitos anos.

Hoje vou fazer a seleção. As coisas precisam girar, é o que todos dizem. Não se guarda aquilo que já não é útil.

Meu Deus, como é que eu tive coragem de comprar, de comprar, não, de usar uma coisa dessas?!, espantava-me com frequência. Logo em seguida, comovia-me e tocava com ternura esta e aquela peça. Tocando-as, sentia voltarem as pessoas, os momentos, os perfumes.

Esta saia foi um dos meus meninos que me deu com seu primeiro salário. Usei tanto. Gosto dela.

Minha blusa vermelha de cashmere! Indispensável. Foi minha mãe que me mandou quando eu era estudante e morava num pensionato. É a blusa mais quentinha que eu tive na vida. Ela sempre mandava pacotes com roupas e comidas. Lembro-me daquele ano em que todas as meninas do pensionato iam a uma formatura e a única que não tinha roupa para ir era eu. Num milagre que até hoje não explico, no dia da formatura chegou um pacote com o vestido mais bonito que eu poderia imaginar. Senti-me a própria cinderela… e lá fui eu para o baile, sem abóbora, mas com a proteção de uma madrinha que ninguém conhecia. Sei que trabalhava pesado para isso… as comidas ela tomava emprestadas da despensa de minha irmã. Ela sempre fez assim: o irmão mais abastado ajudava o outro, tivesse ou não conhecimento disso.

A saia nesgada de jeans desbotado espia em meio às calças penduradas. Ah! Meus jeans: saias longas, curtas, calças largas, justas, camisas, bolsas… Minhas colegas me chamavam de “a moça dos jeans”. A tal da saia nesgada chegou a provocar uma pergunta espantada: Você não tem vergonha de usar essas roupas? (Talvez me achasse meio hippie.) Mas como ser elegante com três turnos de trabalho e uma maravilhosa família com que conviver – marido, cinco filhos, gatos, plantas – todos com seus chamados e suas necessidades? Os jeans resolviam tudo, mesmo quando eu saía do parquinho de areia em que brincava com meus filhos direto para a escola. Jeans servem mesmo para tudo.

Problemas com roupas e calçados sempre me assombravam. Teve um dia em que, ao me arrumar para ir ao cursinho, percebi que meus sapatos estavam todos estragados. Telefonei para meu marido, que já estava em seu trabalho, e pedi que comprasse um par de sapatos e me esperasse na esquina mais próxima. Ali cheguei, de táxi e descalça, coloquei os sapatos e saí correndo para a sala de aula.

Céus, quantos casacos! Muito quentes! Acho que a cidade já teve dias mais gelados. Lembro-me de usá-los, embrulhada em cachecóis. Estão novinhos… Vamos esperar os próximos invernos.

Aqui estão as blusas! Minhas blusas queridas, quase todas presentes dos meninos. Cada uma tem um motivo, um momento.

Chemise de mangas longas?! Deve ter mais de dez anos… Mas está novinho… e é sempre útil. Este outro tem o comprimento certo.

Aqui está a calça listradinha. Comprei na Provence… Chique, não?! Não. Estávamos almoçando num restaurante de uma vila medieval. Nicholas, com febre, resolveu deitar-se no colo da mãe. No caminho para seu socorro, esbarrou em um dos copos de suco de laranja que virou em cima de mim. O suco molhou minha roupa, meus calçados e escorreu para o chão. Diferentemente dos costumes brasileiros, ninguém deu a mínima; nenhum garçom prestou qualquer ajuda. Antes de sairmos, ao pagar a conta, meu genro pediu desculpas ao atendente.  Saímos então em busca de socorro. Numa feira de rua, encontrei a calça listradinha, lavei os sapatos num chafariz e troquei de roupa numa loja próxima.

E este vestido ainda na embalagem? Recordo agora: íamos ser padrinhos de casamento e, na véspera, um grande imprevisto, quinze dias de UTI, idas e vindas aos médicos. Tudo passou, e o vestido ficou no cabide como viera da loja. Novinho… alguém ainda pode usar, outros casamentos virão.

Olhando com carinho as peças organizadas nos varões e prateleiras, entendi por que não me desfizera de nenhuma daquelas peças: elas ainda guardavam histórias, sentimentos. Meu guarda-roupa é minha lata de bolachas onde protejo minas recordações.

Fechei o guarda-roupa.

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