João e Maria

João e Maria

Agora eu era o herói

E o meu cavalo só falava inglês

A noiva do cowboy

Era você além das outras três

Eu enfrentava os batalhões

Os alemães e seus canhões

Guardava o meu bodoque

E ensaiava o rock para as matinês

 

Agora eu era o rei

Era o bedel e era também juiz

E pela minha lei

A gente era obrigado a ser feliz

E você era a princesa que eu fiz coroar

E era tão linda de se admirar

Que andava nua pelo meu país

 

Não, não fuja não

Finja que agora eu era o seu brinquedo

Eu era o seu pião

O seu bicho preferido

Vem, me a mão

A gente agora já não tinha medo

No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

 

Agora era fatal

Que o faz-de-conta terminasse assim

Pra lá deste quintal

Era uma noite que não tem mais fim

Pois você sumiu no mundo sem me avisar

E agora eu era um louco a perguntar

O que é que a vida vai fazer de mim?

 

Composição: Chico Buarque / Sivuca

 

Um texto bem elaborado permite ao leitor refazer o caminho seguido por seu criador e não só apreender a mensagem que ele transmite como ainda encontrar os recursos utilizados nessa elaboração. São esses recursos responsáveis por dar sequência ao pensamento inicial e também pela unidade indispensável ao texto (em outras palavras, são eles que garantem a coesão e a coerência exigidas de um bom texto).

 

Vamos, pois, ver como se fez JOÃO E MARIA:

 

O primeiro aspecto a merecer destaque é o emprego de “agora eu era”, típica expressão usada pelas crianças ao iniciarem qualquer brincadeira. É o resgate do faz de conta que vai nos remeter ao mundo infantil. Se nos detivermos na retomada dessa expressão em outros momentos do poema/canção, notaremos que ela dá sempre início a um novo momento da infância ali apontada. É como se o crescimento de um menino se fizesse diante de nossos olhos.

 

Primeira parte – Os verbos empregados na apresentação dos fatos/acontecimentos estão todos no pretérito imperfeito do indicativo: além do era, que aparece repetido, encontramos falava, enfrentava, guardava, ensaiava. Ao contrário do pretérito perfeito, que se refere a um fato acabado, encerrado, sem continuidade, o pretérito imperfeito remete a um acontecimento que se desenrola no passado. O imperfeito traz uma mensagem de continuidade no passado, de alguma coisa que então era habitual. Há, pois, um tempo/espaço em que uma vida se desenrolava.

Observando-se o aspecto semântico, nota-se o enfoque de comportamentos característicos da infância, a começar pela escolha de várias crianças para viver um mesmo papel nas representações infantis, coisa que não seria aceita por crianças mais velhas (A noiva do cowboy era você além das outras três). Nota-se, também, após o bom humor do cavalo a falar inglês – alusão aos bang-bangs apreciados pelos meninos –, uma gradação nos interesses apresentados e enfocados na sucessão dos verbos falava, enfrentava, guardava, ensaiava – da ingenuidade presente nos primeiros enfoques (enfrentar os batalhões revela a criança que admira o heroísmo das batalhas) a novos interesses que desabrochavam (ensaiar um rock já demonstra um novo interesse). Fica, pois, evidente para o leitor atento que a escolha do vocabulário para apresentar as situações cria um todo que abriga as imagens e a mensagem que o autor deseja transmitir em seu texto.

 

Segunda parte – O menino está agora entrando na adolescência. Como nos damos conta disso? Pela mesma razão de o termos reconhecido criança na primeira parte: o emprego de agora eu era que nos remete a um passado que se desenrola, o uso de verbos na forma de pretérito imperfeito (era, andava) desvelando os novos interesses do garoto em crescimento (andava nua pelo meu país). Aqui também são os aspectos escolhidos pelo autor (sintáticos, morfológicos, semânticos) que tecem os pontos apresentados e aproximam as peças formando o todo (o senso de justiça, o despertar do sentimento amoroso e da sensualidade).

 

Terceira parte – Observando os recursos aqui empregados, o leitor se dá conta de uma alteração no mundo enfocado. É uma agitação revelada na presença de diferentes tempos verbais. O emprego do imperativo (não fuja, finja, vem, me dê) se mistura ao emprego do imperfeito (era, tinha), do presente (acho) e do mais que perfeito (tinha nascido). A sequência de chamados revela um estado de alma diferente do inicial. O menino, o adolescente, cresceu e se depara com um sentimento novo – ele está apaixonado.

 

Quarta parte – Nota-se nessa quarta parte um novo procedimento na utilização dos verbos, misturando-se pretérito imperfeito, pretérito perfeito e futuro; a escolha gramatical e semântica refletindo a agitação emocional do personagem, que se pergunta numa demonstração de assombro: o que é que a vida vai fazer de mim? É o tempo da infância que se fecha, desaparece o espaço conhecido (esse quintal) e o mundo adulto vai se impondo, ainda não revelado (uma noite que não tem mais fim). Justifica-se, assim, a pergunta que encerra o poema/canção e também a imagem apresentada ao leitor.

 

Uma última observação – O título é sempre um detalhe muito especial na elaboração de um texto: pode ser uma ironia, um encaminhamento, uma palavra/frase que resume a intenção do texto. Aqui temos João e Maria, uma história de todos conhecida e uma das mais presentes no imaginário infantil. Destaque-se que, em João e Maria, a história, temos todos os elementos presentes também na canção: a infância, a perda, o medo, o enfrentamento do desconhecido.

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