7 . No trânsito

7 . No trânsito

No trânsito, os indivíduos não só seguem diferentes rotas como também se deixam conduzir por valores e comportamentos incomuns. Não, não estou falando das exigências das leis que ordenam o vai e vem nas cidades e rodovias, falo dos instintos primitivos que afloram quando um motorista se acomoda no banco de seu carro: um novo ser passa a determinar marchas, velocidade, direção.

Muda também o vocabulário normalmente usado pelo motorista quando não está sobre as quatro rodas. Tenho tido oportunidades várias de conhecer o novo emprego de palavras antigas.

Estava eu outro dia indo na direção bairro-centro pela Avenida Beira-Mar. Como a conversão para as ruas que atravessam a cidade ali se faz pela esquerda, precisei me manter nesse lado da via, sinalizar e reduzir um pouco no momento de adentrar na rua desejada. Enquanto me posicionava, ouvia do motorista que me seguia: “Vaca! Vaca!”. Não sei se ele me xingava ou me alertava para a presença de um animal à frente.

Noutra ocasião, ao sair de uma principal para uma secundária, dei de frente com uma caçamba coletora e precisei desviar para a esquerda. Um senhor de meia-idade, que despontava de uma servidão, jogou a cabeça para fora enquanto me dirigia aos berros uma frase para mim impublicável. Parados ambos no semáforo logo à frente, abri a janela e lhe lancei o mais simpático sorriso em agradecimento.

Essa situação de obstáculo à frente tem-me rendido situações peculiares. Voltando do continente em direção à ponte, vi-me subitamente engolida por um número incontável de carros que deixavam o estádio comemorando a vitória de seu time. Reduzi rapidamente para me adequar a sua velocidade. O mesmo não fez o jovem que me seguia: bateu com tal força que seu carro ficou preso na traseira do meu. Ali ficamos a olhar os torcedores que se distanciavam. Voltando-se para mim, o parceiro do acidente disse-me apenas: “Quem mandou reduzir? Eu não estava esperando.”. “Pois é, nem eu, mas eu estava prestando atenção…”.

Teve um episódio esquisito num dia em que estacionei em frente à padaria para comprar o jantar da família. Tão logo desliguei a chave e pus o pé no chão, senti uma batida acompanhada de um grande estrondo que sacudiu até o espaço em que eu pisava. Voltei-me e vi dois jovens saindo do veículo que ocupava agora o meu bagageiro: “Desculpe, Dona; a gente estava sem freios e assustados, né?, daí escolhemos bater no seu carro para poder parar.” “Como???”. O carro era roubado e nunca mais vi os meninos, que por nada puderam ser responsabilizados, é claro.

Doutra feita, fui até a casa de materiais de construção fazer algumas compras. Feitas as escolhas, pediu-me o atendente que manobrasse o carro – que estava na parte da frente do pátio – até o fundo para facilitar a colocação dos sacos do material que eu adquirira. Enquanto dirigia o carro naquela direção, cortou-me subitamente a frente um veículo em velocidade, vindo do outro lado da rua, que estacionou no lugar a mim destinado. Precisei frear bruscamente e, quando olhei surpresa para o motorista, ele me atalhou em tom de mando: “A preferencial era minha!” “O quê???”

Grávida, acabei numa grande fila numa rua central. Para meu desconforto, a fila dobrava uma esquina e fui eu quem ficou com o carro ali parado. Os motoristas que vinham atrás de mim, irritados, buzinavam sem parar, e, na frente, nada se resolvia. Cansada com o buzinaço, saí do carro, barriga imensa saindo na frente, fui até a janela de meu primeiro vizinho de estrada – um enorme caminhão de carga – e lhe perguntei suavemente: “Você quer que eu voe, querido? Quando liberarem minha frente, eu passo. Combinado?”. As buzinas calaram: mães ainda são respeitadas.

Subindo uma rua com acentuada inclinação, em direção a movimentada clínica, carros estacionados em ambos os lados, percebi um motorista tentando descer e não encontrando espaço para isso. Procurei a primeira entrada de garagem e torci a direção um tanto para a direita para que ele pudesse passar. Logo após meu movimento, dois carros que iniciavam a subida atrás de mim foram acelerados com força em direção ao topo e o jovem que procurava a descida lá ficou até tudo se acomodar.

Houve um dia emblemático: passava eu por uma estreita rua secundária entre duas preferenciais. Carros estacionados dos dois lados da via. A minha frente uma grande caminhonete, moderna e elegante. Inesperadamente, o motorista atravessou seu carro em direção à calçada à direita e recuou obrigando-me a parar. Percebendo que ele estava manobrando para retornar, posicionei-me mais à esquerda esperando que ele completasse a manobra e fizesse o retorno.

Contrariando minha lógica, terminado o movimento de volta, deu uma longa ré e, avançando, posicionou-se em minha frente. Fiz-lhe sinal que “tudo bem, podia passar; eu aguardaria para retomar a minha mão”. Pondo a cabeça para fora da janela, olhos esbugalhados, vermelho de ódio, o homem começou a gritar: “Saia da minha frente! Você não conhece as leis do trânsito? Você está obstruindo minha passagem.” Em seguida, agarrou-se ao celular e freneticamente ficou a bater inúmeras fotos de mim e de meu carro enquanto gritava: “Estou ligando para a polícia. Você precisa aprender a obedecer a lei e a respeitar os outros”.

Tentei argumentar sorrindo: “Mas, meu querido…”. “Ah!, não! Querido não, não ouse…”. Logo vi que não era nativo: os florianopolitanos todos se quiridam, como diz o professor Júlio de Queiroz. Sentindo a inutilidade de qualquer gesto ou argumento e sem entender o que ali acontecera, arranquei e saí pela direita.

Gentileza no trânsito? Nunca mais!

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