16. Nasce uma estrela

16. Nasce uma estrela

Frio de rodoviária. A noite impregnada de cheiros e emoções. O vento sacudia os galhos floridos das laranjeiras e esparzia seu incenso na limpidez da noite. Embora o calendário apontasse para o final do inverno, o brilho intenso das estrelas prometia geada ao amanhecer.

Os passageiros já acomodados nos bancos do ônibus aconchegavam-se quanto possível em mantas e cobertores. Fechei melhor meu casaco e aproximei o cachecol do rosto, protegendo a boca e o nariz.

Na plataforma de embarque, apressados retardatários e o grupo que não mostrava intenção de se desfazer. Grossos blusões de lã, gorros, calças jeans e tênis denunciavam-lhes a idade e a despreocupação. No meio das vozes adolescentes, excitadas, sobressaía vez ou outra uma fala adulta: “Cuide da saúde.” “Não deixe de dar notícias.”

Instantes antes de ser anunciada a saída, em tom de expectativa, embargada, quase em sussurro, mas com força para se destacar aos comentários e recomendações, fez-se ouvir a pergunta direcionada à mãe: “Você acha que estou fazendo certo?” “Será isto mesmo?”

Sabia que ia deixar para trás tudo o que conhecera até então, que se despedia de si mesma, da menina que fora. O sonho acalentado, os projetos cultivados poderiam agora virar realidade. O mundo que a esperava parecia crescer a sua frente e ameaçar engoli-la.

Vontade de ficar? Medo? Mãos estendidas em busca de alguma solidez que lhe servisse de guia.

A resposta veio calma: “Estás, sim, filha. Pode ser o teu futuro.” “Depois … nós estamos todos aqui. Deixa te dar o meu beijo. Boa viagem. Avisa quando chegar.”

A esse sinal, os amigos, em visível agitação, sucederam-se em despedidas, bons votos, recados: “Não nos esqueça.” “Já estou com saudade.” “Despachei os pacotes. Tuas malas estão todas atrás, no lado esquerdo. Os tíquetes estão aqui.” “ Não quero chorar.”

Destacando-se pela primeira vez do grupo, com os olhos presos ainda aos que estavam na plataforma, ela subiu os degraus e entrou no ônibus: um delicado rosto de menina que a maquiagem não conseguia alterar somava-se ao corpo ágil, alto e delgado cujos movimentos suaves completavam a doçura do olhar.

Diferentemente dos demais passageiros, em roupas simples e despretensiosas, vestia um elegante conjunto de lã em harmonia com delicadas botinhas de salto e bico fino. Os amigos espremiam-se junto à janela para acompanhá-la até o último minuto. O que estaria codificado em cada semblante? Adeus? Quero ir contigo? Não nos deixes? Inveja?
Solidariedade?

Um imenso leãozinho apertado contra o peito traía a aparência adulta que a determinação impunha à garota. Alcançando o assento que lhe cabia, ela acenou para os que ficavam e acomodou a bolsa no porta-bagagem.
Apagadas as luzes, o ônibus tomou a estrada. Pouco a pouco, os passageiros se entregaram ao sono. A menina se deixou ficar… quieta, enroscada em sua poltrona, com seu bicho de pelúcia ao colo, numa cumplicidade estabelecida pelo silêncio.

O som da campainha assustou os rostos amassados anunciando que o dia amanhecia e a viagem chegava a seu termo.

Na entrada da cidade, os jardins das casas rasas emendavam-se com prédios de pouca altura. Aqui e ali, apagavam-se as luzes das ruas e caminhavam trabalhadores prontos para o dia que começava.

O ônibus parou. O motorista, solícito, desembarcou e demorou-se a ajeitar as muitas malas e pacotes da mocinha que ali ficava. No muro, o leãozinho aguardava.

Com o veículo novamente em movimento, deixamos de ver nossa companheira de jornada, encoberta agora pelos ramos e vagens de uma cássia de que o frio da estação arrancara as folhas. O céu se coloria com a presença do sol. O vento balouçava os galhos desnudos. Como sinos da felicidade, faiscavam as favas de ouro velho.

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